Todo dia levantava cedo, dobrava seu cobertor, fazia seu
café, varria seu meio metro de piso se balançando no ritmo do cantarolar
daquele que lhe alegrava os dias.
Ameiga seu anjo amigo, retira o cobertor de um palmo que o
protegeu do frio e de predadores, ele agradece gentilmente com os mais
maravilhosos cantos.
- Eu entendia o que ele dizia no canto! Resmunga baixinho envergonhada.
Nos seus 84 anos solidão não conhecia. Aquele assobiar
constante preenchia seus dias.
Às onze horas saia de casa. Em uma das mãos as marmitas dos
pedreiros da obra próxima de casa, na outra seu amigo precioso, que, em grades
amava e cantarolando saíam a passeio.
Cabeça branca, pano protege, olhos no chão sempre, não
poderia nunca cair, vigia sempre, pedra no chão, nada de mal lhe aconteceria se
cuidado tivesse nas ruas empoeiradas e esburacadas daquela vila do interior.
O amigo cantarolando, sol de inverno, comidinha cheirando,
passos lentos e vagarosos, lembranças dos filhos, lembranças felizes.
Rompeu um grito. - Ei! A Senhora!
Alegria partida, mão pesada veio roubar, dor cruel.
- O anel? tirei. machucava seu pezinho.
Pedidos e lamentos em vão, vista escureceu, mão alheia de
macho viril pesada a retirar-lhe o amigo. Chave de casa atirada à rua, muitos
assistem, nada podem fazer, uma voz ecoa, o companheiro da mão de ferro, como
que querendo se desculpar da agressão que não é sua, pega chave do chão,
carinhosamente devolve àquela que nada entende.
- Não acha que já abusou demais hoje? Resposta vem rápida -
“sou abusado mesmo”.
Olhos cansados só enxergam as casinhas gradeadas, numerosas
casinhas, seu amigo pra lá vai também.
Choro e dor. Levaram pra longe o amigo, pra outra cidade,
terra de ninguém.
Sem dormir, agora a mente é um filme. - Será que tem frio?
Ele só dorme coberto, o que foi feito dele? Nem mesmo perguntaram meu nome, nem
mesmo escreveram nada, seriam ladrões disfarçados? Aquela mão de asco, o que
fez do bichinho?
Acorda cedo, corajosa, vai enfrentar seus medos, leva na
sacola um registro, papel que acredita salvará seu amigo. Já não há mais tempo,
não se sabe quem o levou, quem era, nem pra onde foi.
Nos seus 84 anos, solidão agora conhece e lembranças são as suas
companheiras.
Lugar sagrado destinado aos filhos, que ali já não moram faz
tempão, agora é ocupado pela dor de não poder se defender, humilhada pela lei,
onde respeito deveria ser palavra de ordem.
Para quem sabe ler, letra é letra, pingo é pingo, toda ação
tem uma reação.
Estatuto do idoso existe, proteção aos pássaros também, na
ordem de prioridades não se sabe quem vem. Se lei é lei, podem tudo, menos o
que por ela é proibido, descumpriu, papel e caneta, anotação, notificação, auto
de infração, penalização.
E dentro de sua função, só o que previsto está, papel e
caneta, anotação, notificação, auto de infração, na falta dos itens, nada de
apreensão. Sem penalização.
Nos seus 84 anos, até pedido de desculpa basta, mas luto,
não terá tempo para acabar.
Assim, Dona Maria agora fica imóvel, olhando o tempo passar,
dançando só, pensamento em seu amigo cantador, atenta ao único som que restou,
vindo de um radinho de pilha velho que nunca lhe informou que não poderia ter
um amigo por trás das grades.
04.07.2010
04.07.2010