15 de dez. de 2014

Dona Maria que dança é essa que a gente dança só!

Todo dia levantava cedo, dobrava seu cobertor, fazia seu café, varria seu meio metro de piso se balançando no ritmo do cantarolar daquele que lhe alegrava os dias.

Ameiga seu anjo amigo, retira o cobertor de um palmo que o protegeu do frio e de predadores, ele agradece gentilmente com os mais maravilhosos cantos.

- Eu entendia o que ele dizia no canto! Resmunga baixinho envergonhada.

Nos seus 84 anos solidão não conhecia. Aquele assobiar constante preenchia seus dias.

Às onze horas saia de casa. Em uma das mãos as marmitas dos pedreiros da obra próxima de casa, na outra seu amigo precioso, que, em grades amava e cantarolando saíam a passeio.

Cabeça branca, pano protege, olhos no chão sempre, não poderia nunca cair, vigia sempre, pedra no chão, nada de mal lhe aconteceria se cuidado tivesse nas ruas empoeiradas e esburacadas daquela vila do interior.

O amigo cantarolando, sol de inverno, comidinha cheirando, passos lentos e vagarosos, lembranças dos filhos, lembranças felizes.
Rompeu um grito. - Ei! A Senhora!  

Alegria partida, mão pesada veio roubar, dor cruel.

- O anel? tirei. machucava seu pezinho.

Pedidos e lamentos em vão, vista escureceu, mão alheia de macho viril pesada a retirar-lhe o amigo. Chave de casa atirada à rua, muitos assistem, nada podem fazer, uma voz ecoa, o companheiro da mão de ferro, como que querendo se desculpar da agressão que não é sua, pega chave do chão, carinhosamente devolve àquela que nada entende.

- Não acha que já abusou demais hoje? Resposta vem rápida - “sou abusado mesmo”.

Olhos cansados só enxergam as casinhas gradeadas, numerosas casinhas, seu amigo pra lá vai também.
Choro e dor. Levaram pra longe o amigo, pra outra cidade, terra de ninguém.

Sem dormir, agora a mente é um filme. - Será que tem frio? Ele só dorme coberto, o que foi feito dele? Nem mesmo perguntaram meu nome, nem mesmo escreveram nada, seriam ladrões disfarçados? Aquela mão de asco, o que fez do bichinho?

Acorda cedo, corajosa, vai enfrentar seus medos, leva na sacola um registro, papel que acredita salvará seu amigo. Já não há mais tempo, não se sabe quem o levou, quem era, nem pra onde foi.

Nos seus 84 anos, solidão agora conhece e lembranças são as suas companheiras.

Lugar sagrado destinado aos filhos, que ali já não moram faz tempão, agora é ocupado pela dor de não poder se defender, humilhada pela lei, onde respeito deveria ser palavra de ordem.

Para quem sabe ler, letra é letra, pingo é pingo, toda ação tem uma reação.

Estatuto do idoso existe, proteção aos pássaros também, na ordem de prioridades não se sabe quem vem. Se lei é lei, podem tudo, menos o que por ela é proibido, descumpriu, papel e caneta, anotação, notificação, auto de infração, penalização.

E dentro de sua função, só o que previsto está, papel e caneta, anotação, notificação, auto de infração, na falta dos itens, nada de apreensão. Sem penalização.

Nos seus 84 anos, até pedido de desculpa basta, mas luto, não terá tempo para acabar.

Assim, Dona Maria agora fica imóvel, olhando o tempo passar, dançando só, pensamento em seu amigo cantador, atenta ao único som que restou, vindo de um radinho de pilha velho que nunca lhe informou que não poderia ter um amigo por trás das grades. 
04.07.2010 

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