Esse foi um dia silencioso e cinza. O
frio tomou conta de mentes e corações antes inquietos, agora contemplativos. É
um instante que cora a face dos que, ainda sendo humanos, mostram sua nudez
identificando-se no que faz todos iguais. A passagem do cortejo ao som das
sirenes entre aplausos e lágrimas revelou uma emoção contida. Entre pensamentos
soltos veio a imagem daquele corredor de tábuas escuras. Parei entre os portais
que seguravam a porta clara que continha minhas imagens de infância. Três
quartos! O do meio era o das fantasias.
Na parede à esquerda, que se juntava ao
portal, havia a estante de portas de vidro, era a mais alta, com lindas
coleções de livros. Moravam ali os grandes pensadores ocidentais. Encarcerados
eles me olhavam através do vidro, eu, os cobiçava. Ousei vez por outra, em silêncio,
abrir muito devagar uma das portas de correr, para não chamar atenção, tomava
algum à mão, manuseava ali mesmo, de pé. Aleatórias leituras rápidas me traziam
curiosidade. Escritas de Deus, da morte, da vida, da política e da arte, uma
interrogação silenciosa que ficou sem perguntas e sem respostas.
Na parede imediata, que formava o ângulo
reto, encostava-se a estante permitida, nesta, os livros que me levavam às
viagens até as quatro horas da tarde, quando éramos chamados para o lanche e o
banho. Tomada de imagens me vi deitada com a barriga para baixo, naquela cama
que ficava colada à estante, joelhos dobrados, pernas cruzadas ao alto, livro
nas mãos.
Da janela gradeada que ocupava uma
parede inteira do quarto posso ver aquele quintal. Vejo-o nos dias de chuva e
em dias de sol Nós de tão pequenos parecia que tínhamos um quintal gigante. Nossa
caramboleira virava uma casa que nosso vô construía, fazendo das folhas de
bananeiras as paredes que dividiria os cômodos. Ali era a nossa casa da arvore,
no chão de terra com uma só coluna, paredes de folhas de bananeiras, amarradas
umas às outras pelos barbantes, que antes amarravam os embrulhos de pão,
telhado de folhas de carambola, móveis de pedras ou algumas tábuas velhas que
meu vô arrumava. Ele certamente construía a casa de seus sonhos também. Nunca
ouvi dizer que alguém teve uma casa de arvore assim, no chão, enorme! Após o
almoço, quando chegávamos da escola, era de lei ir para a casa de nossa vó. Uma
fila para tomar na mesma colher a gema de ovo de gansa com mel. Eca! Depois
suspiro das claras. Oba!
Volto os olhos para o lugar de dentro me
encontro defronte a penteadeira da parede à direita da porta, de um lado o
Cristo de cerâmica azul clara que com seus olhos nos seguia em qualquer direção.
Ele nos vigiava! Nada às escondidas, Ele nos via todo tempo! Era engraçado vira-lo
de costas para que Ele não pudesse acompanhar meus passos. Do outro lado, cremes
para pele e alguns bichinhos de vidro que me faziam sonhar. Dia destes é que
descobri como se faz os bichinhos de vidro. Um vídeo na internet mostrava o
artesão fabricando. Muito difícil e bonito o trabalho para fazer aqueles
cavalinhos de vidro que tanto iluminaram meus olhos.
Com o tempo os livros que ocuparam meus
dias tomaram outros rumos. As pessoas também. Carrego comigo tantas outras
humanidades, partes que se somaram às minhas, recortes colados para sempre
dentro ou pendurados feito móbiles dançando no ar. Levaram
também tantas partes seguidas. Até hoje a gigante borboleta preta traz notícias
ruins e dois homens vestidos de branco atravessam a calçada que levava à
varanda da sala, e o som triste do choro de minha avó ecoa pela casa.
São suaves e ternas as lembranças
daquela casa.
Minha bruxa de pano! Onde foi morar?
Um beija flor desmaiado ao bater na
vidraça, salvo pela água que minha avó pingava em seu frágil corpo; embalar o
morcego, que foi derrubado da árvore, com canções de ninar; as pontas das
grades, que após nocautear muitos de nós abrindo brechas na testa, foram
vestidas de retalhos para não mais ferir; as panelinhas minúsculas que
desapareciam e reapareciam misturadas na terra renovando a alegria; as roseiras
que davam tanto trabalho para não serem devoradas pelas formigas; ajudar meu
avô varrer o quintal e queimar folhas secas; catar borboletas de todas as
cores; esperar ansiosa pela chegada do tio que fazia mágicas incríveis com as
lentes voltadas para o sol, e depois, revelar madrugada a fora, com ele, os
filmes fotográficos ao som do aparelho que tocava discos antigos e muito
grossos com musicas de orquestras barrocas. Não sei se os outros gostavam tanto
quanto eu das músicas de meu tio. Era mágico ver as imagens aparecerem no papel
fotográfico. À tardinha era hora da estação da rádio perereca invadir os rádios
vizinhos. Oh coisa boa. Meu tio era biruta!!
Então foi assim que ao som das sirenes, mirei
tudo pela tela que me transportou à inexistente janela do quarto do meio, o
quarto da minha tia, que me ensinou ver as horas de pé, olhando para o relógio
que badalava as horas, beliscando meus braços a cada erro, me mostrou como
caminhar com os ombros para cima atravessando o cabo da vassoura entre minhas
costas e braços, depois ainda, me alertou que para andar com equilíbrio deveria
balançar os braços e me instruiu a amar seus livros quando a saudade por ela
apertou. Recordo sua roupa de veludo que minha avó costurou para que ela não
sentisse frio na viagem que a levaria à França.
Pequenos momentos de nós todos, criançada
que de mãos dadas percorreram beira do asfalto a caminho da casa da avó, num
filme feito da janela do quarto do meio. O quarto da minha tia.
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