22 de mai. de 2018

Os Olhos


      

                                                  Laura Stanzani Lapa                                   

       Há quem diga que os olhos são o espelho da alma. Poder-se-á também dizer que são a parte visível do nosso cérebro ou que exprimem o que nos vai no íntimo: amor ,ternura, desejo, tristeza, cansaço, alegria, inveja, rancor, sonho, esperança, traição...Com eles “comemos” um prato bem apresentado ou simplesmente um fruto colorido, que olhamos com olhos gulosos. Diz-se muitas vezes” os olhos também comem”.
         Quem nunca ouviu falar do “mau olhado”? Há mesmo quem acredite e até “sabe” qual foi o fulano ou fulana que pôs “olho ruim” nas suas flores, quando elas começam a dar sinais de pouca saúde, por exemplo. E de manhã? “Hoje o dia não me vai correr nada bem,estava uma pessoa no autocarro -bem sei quem ela é- e olhou-me muito tempo com aqueles olhos...Nem gosto que ela me veja.”
       Que seja tudo por bem. Que um olhar mendigo a implorar misericórdia encontre outro que o acuda e lhe conceda a graça desejada ou, quando não, um outro olhar, de simpatia, de compreensão, de solidariedade. Como é que me foi possível não citar o olhar mendigo daquele que pede sem palavras e que nunca mais se pode esquecer? Os olhos daqueles que olham quem come . Todos os gestos são seguidos sem nenhuma falha_ “pegou agora o pedaço melhor, há os que comem o melhor pedaço primeiro. Esses são os fartos, podem deixar o menos bom para o fim e depois nem o comer porque já não têm fome. Se fosse eu comeria o melhor no fim, só para ficar com aquele gostinho, aquela sensação de alguma coisa a escorrer pela garganta abaixo”.
        E a comida dos cães que se fazia outrora, no tempo em que os cães eram tratados como cachorros e cozinhavam-lhes arroz de terceira categoria ou massa, quando esta era mais barata, com os ossos e demais  restos que as freguesas pediam no talho?  São pitéus negados aos pobres, os esquecidos, os sem nome, os que ninguém sabe que existem, que são a fome em forma de gente e que escondem a sua miséria.  Aqueles em cuja goela pode acontecer que uma aranha faça lá a sua teia,não sei para quê, pobre aranha sem juízo...
       Ora aconteceu-me de ouvir um jovem sacerdote a fazer a sua homilia muito pertinho dos fiéis.   Ele era o mestre, o que faz perguntas a este, àquele. O mais importante são as perguntas e ele perguntava. E também ele contava histórias. Narrou então um acontecimento vivido nos Açores e que dá que pensar.
       É conhecida de quase todos a festa de Santo Cristo dos Milagres,  em São Miguel, que recebe milhares de devotos ou curiosos de várias partes do mundo, pois é digna de se ver. Na procissão ia uma mãe com o seu filho  ao colo, já crescidinho, mas cego. O menino pedia insistentemente que a mãe o tivesse voltado para o Santo Cristo, que o levantasse mais para ver. A mãe fazia o possível, mas já estava muito cansada.
 _  Mas filho, tu não o podes ver, és cego.
           -Mãe, eu sei que não vejo, mas também sei que, neste momento, ELE está a olhar para mim. Não sabemos se o menino passou a ver, mas este, sim, acreditava na força do olhar e, naquele momento, ele já via com o coração.Não dizia Saint-Éxupéry “A gente só vê bem com o coração, o essencial o essencial é invisível para os olhos”?
                     
Laura Stanzani Lapa

Bordalo,30 de maio de 2017

20 de mar. de 2018

SOMOS TODOS VÍTIMAS


               Difícil falar, mas difícil também não manifestar o que penso sobre tudo isso que está acontecendo.
            A freira Dorothy Stang, religiosa norte-americana naturalizada brasileira, foi assassinada, aos 73 anos, com seis tiros numa estrada na cidade paraense de Anapu, no dia 12 de fevereiro de 2005. Na época, a irmã Dorothy lutava pela implantação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança em comunidades extrativistas da região.
             A juíza Patrícia Acioli em 12 de agosto de 2011, em Niterói, foi morta por policiais que investigava.
           Um dos líderes comunitários da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), Paulo Sérgio Almeida Nascimento, de 47 anos, foi morto a tiros na madrugada do dia 12 de março de 2018.
             Há suspeitas de que o assassinato da vereadora no RJ, Marielle Franco, em 14 de março de 2018, tenha sido justamente por denunciar abusos da corporação policial.
          Algo de muito errado acontece com os seres pensantes. Quantos assassinatos de pessoas que tiveram a coragem de denunciar algo de errado. E ai, vem alguém dizer para você ficar calado. Vem alguém apontar que você é a favor da corrupção, quando é exatamente o contrário. E vem alguém dizer que faz parte do golpe e outros falarem que esses ativistas são todos comunistas e merecem morrer. Circo de horrores!
             Não há diferença entre as mortes citadas quando se analisa o resultado esperado pelos assassinos e mandantes.
          O que está em jogo é esse CALABOCA que desde que o mundo é mundo uns querem impor aos outros. E comumente é assassinado quem luta por direitos de quem não tem vez e nem voz. A diferença entre os que são assassinados e os que matam ou mandam matar é a covardia. Quem grita NÃO PÕE MASCARAS, escancara. Quem mata ou manda matar, precisa se esconder, são covardes, estão feito ratos na toca, ou  misturados no meio de quem nem desconfia o monstro que há neles.
          As características pessoais de cada uma das pessoas assassinadas, pelos motivos citados, não deve ser parâmetro para qualquer julgamento. A motivação dos assassinatos sim deve ser analisada. Querem impor o medo em cada um de nós.
         Se há policiais de caráter, existem os sem. Se há políticos sem caráter, tem os que entram para a vida política por se sentirem capacitados e são hábeis e éticos. E assim, vai! Em tudo é assim. Mas quando a contaminação dos sem caráter abala as estruturas do estado, não há pessoa que sozinha possa lutar. Imagine quantos policiais que são sérios em suas condutas sofrem dentro de corporações doentes. São ameaçados por colegas de profissão. Existe isso em qualquer profissão. Só que eles POSSUEM as armas que deveriam nos defender. É muita coisa gente!! Vamos pensar! Todos nós somos vítimas desses crimes. Não é direita ou esquerda.
     Lutar para que o país entre novamente no eixo, denunciar que os bandidos estão armados e a população está sofrendo com tantos latrocínios não pode ser de forma a excluir a revolta dos que perdem seus lideres comunitários ou políticos.
        Se eu estiver errada em meus pensamentos, então não sei mais o que é ser "humano".

18 de mar. de 2018

A MACIEIRA


Um conto de Laura Stanzani Lapa

Aconteceu no meu jardim. 

Era uma vez uma macieira que vivia há muito tempo entre outras árvores. Sentia-se feliz porque dava todos os anos os seus saborosos frutos a quem os quisesse comer.. Quando chegava a Primavera, ela gostava de se enfeitar e cobria-se de belas flores branco- rosadas que faziam as delícias dos olhos de quem passava. E depois era esperar que nascessem os frutos, que crescessem e que se fizessem vermelhos, maduros, doces e perfumados.
Todos os anos era isso e ela já ia ficando velha, quando descobriu que era a rainha do jardim, ninguém se lhe igualava: o velho pessegueiro partira-se no ano passado, as laranjeiras, coitadas estavam velhas e caquéticas, precisando de limpeza, com as  cabeleiras cheias de galhos secos, piolhos,  uma lástima. As ameixieiras penduravam os seus ramos até quase reçarem o chão, as exibidas, as oferecidas. Coisa feia, sabiam lá elas se alguém queria comer ameixas? -dizia com ar de escárnio. Eu cá tenho a minha dignidade e se alguém quiser comer maçãs, que mas venha pedir com os braços no ar. Eu dou, mas devem pedir. Ou que apanhem do chão os meus refugos,eu não me importo, são velhas e bichosas, mas alguma coisa se aproveita.
Havia também bambus, mas não davam frutos nem se enchiam de flores perfumadas e ela achava-os inúteis, nem sabia se prestavam para alguma coisa. Dançavam ao sabor da brisa e mais nada.
Ela, sim, servia  e gostava de servir. Bem dizia a Gabiela Mistral que “A natureza é um anelo de servir, serve a nuvem, serve o vento, serve o sulco...” O que não lhe ficava bem era aquela mania de se achar a melhor e de menosprezar os seus companheiros de campo.
Ela não sabia que tudo tem a sua utilidade, até os mais repugnantes insetos, vermes, ervas daninhas, vento, calor frio e geada. Tudo. Se ela soubesse quanto paga um homem por um belo bambu para fazer parte da decoração da sua casa... Soubesse ela dos móveis que com eles se fazem, da infinidade de produtos, até taças para guardar as suas lindas maçãs...
Mas é mesmo assim. A velhice nem sempre traz tolerância, conhecimento e compreesão da vida. Temos que ter paciência com os velhos que estão sempre a falar mal de tudo e de todos. Devíamos ter aproveitado a vida para ganhar conhecimento do mundo que nos rodeia, que a vida é bonita com os seus altos e baixos, esplendores e misérias. Mas não, não aprendemos nada. Agora é tarde ou talvez não, que é bom ser-se otimista e não perder a esperança. Quando temos a sorte de viver muito tempo, é como se tivéssemos galgado uma alta montanha, quanto mais vivemos mais alto subimos. Depois olhamos para trás e podemos ver o panoram: crescimento, birras, invejas, injustiças, prémios, castigos, gozos, ganhos e perdas.Temos que olhar para a frente para ver o caminho e para trás para ver o já percorrido. Ser como Janus, o deus de duas caras, uma para frente outra para trás, o abre e fecha. Abrimos com o nascimento, fechamos com a morte.
Pois a macieira, que gostava tanto de ter os seus frutos lá em cima, para poder oferecer a quem lhos pedisse, naquele ano estava muito carregada. Soprava o vento que balançava os bambus. Estes curvavam-se até abaixo, tornavam a levantar-se, iam para o outro lado. E um belo galho carregadinho de maçãs partiu-se e veio ter ao chão, até parecia um galho de ameixieira. E os bambus curvavam-se...e cantavam aos quatro ventos.
Pois são asim os bambus: “ Quanto mais crescem mais baixo se curvam”.
E são assim os vaidosos: “Não sabem que se vira o feitiço contra o feiticeiro”. 

                                                                                                Laura Stanzani Lapa
                                 
                                                                                                      Bordalo, 29 de junho 2017